
Grace Kelly era o nome dela. Nome de gente muito famosa, um dos maiores nomes do cinema de todos os tempos. E princesa. Só que essa da qual vou falar, era minha amiga do segundo ano. Não tinha muitos amigos na escola. Diziam, principalmente as garotas, que ela era metida etc e tal. Mas eu falava normal com ela principalmente no recreio. Um professor gozador, me chamava de Clark Gable, par romântico da famosa atriz.Ela lamentou uma vez: “Praticamente você é única pessoa que fala comigo nesse colégio e ainda assim quando você chega a mim. Quando tento chegar a você, as pessoas saem e na verdade não sei por que razão”. Respondi: “Ora, não dê importância a isso. Só que você precisa se permitir mais. Deixar que as pessoas lhe conheçam melhor, eu lhe conheço melhor que elas e sei que você é boa garota. Talvez você seja introvertida demais”. E ela: “Você é um cara estranho, no bom sentido. Parece doidinho, mas quando fala com a gente, toma um tom intelectual, conselheiro, parceiro mesmo. Sabe se aproximar de pessoas diferentes, respeitando limites , opções. Não faz muitas perguntas. Isso é um dom, sabia? Parece que você é muitos em um só. Como se tivesse uma personalidade para cada situação”. Eu: “Você quase acertou. Digamos que sou moldável, maleável. Hoje deixo as coisas acontecerem mais. Quando tentava dominá-las, mudá-las, tinha problemas. As pessoas ficam próximas da gente sendo mais ouvidas, do que dominadas. Assim elas se sentem conquistadas e não controladas”.
Não sei por quê não namoramos. Falávamos tão próximos e até nos olhávamos, às vezes. Um dia, percebendo o “perigo”, pôs a mão em minha boca, cortando: “Não! Você é meu belo e querido amigo. Quero que continue assim”. Respeitei e pedi desculpas. “Desculpas de quê? Como diria meu pai, você é um bom partido, Carlos. Mas a amizade vale mais”. E ainda brincou: “Não tente de novo que não respondo por mim, hein?”. Mas nunca mais tentei.
Certa vez ela pediu para eu esperar após a aula, pois estava deprimida e queria conversar. Deixamos a turma toda ir embora, pegaríamos o último ônibus. Fazendo companhia até passar o dela, quase perdi o meu. Corri tanto que cheguei dentro do ônibus com a língua de fora. Antes no bar, tomamos umas cervejas, onde perguntei. “O que você faz ou gosta nas horas vagas?”. Ela num sorriso quase sempre raro: “Você não vai acreditar. Toco piano e violão. Sou cantora. Canto em algumas casas, mas só lugares bons. Meu pai não gosta muito, mas acaba deixando, na condição de me levar e buscar. Eu falo pra ele. Quem mandou o senhor colocar nome de artista em mim?”. Assustei e fiquei feliz: “Ora, ora. Minha amiga é artista. Adoro piano e violino, eu tinha vontade de saber tocar e acho lindo um piano bem tocado”. Ainda sorrindo disse: “Então vá me ver na sexta-feira, eu dou endereço. Lá é um pouco caro, mas você vai gostar. Lugar fino. Vou ficar feliz se você for”.Pensei, pensei e exigi: “Vou... se você tocar três pedidos meus”. “Faz sua listinha”, ela disse. Antes de por na bolsa, falou: uma aqui, nunca toquei, mas vou passar final de semana ensaiando.”
Chegou próxima sexta-feira. Sentei-me num canto como sempre gosto, tomando umas doses quentes, noite fria de agosto, vento cortante. Não sabia que havia um lugar tão bonito na cidade. Chafariz colorido no centro. Samambaias choronas no seis cantos descendo pelas paredes. Sim, era tipo um losango. Fora outras flores ornamentais bem distribuídas. Lugar cheiroso.Ela estava num lindo vestido branco, com alguns detalhes brilhantes.Uma luz azul ralinha circulava o palco de cima para baixo, dando um tom de fada à sua pele branca. Tocava divinamente. Depois de pouco mais de uma hora, ela interrompeu: “Amigos. Essa série que vou tocar agora para encerrar, dedico ao meu amigo querido, Carlos, que está ali no cantinho”. Jogou beijinhos em minha direção. “Hei, Carlinhos. Sabia que você viria”. E tocou tão bem meus pedidos, que eu fechava os olhos. SKYLINE PIGEON, de Elton John. WHAT A WONDERFUL WORLD, de Louis Armstrong. O BÊBADO E A EQUILIBRISTA, de Elis Regina, tocou ao violão. E encerrou: “Essa você não pediu, mas é uma de minhas preferidas. UNFORGETTABLE (INESQUECÍVEL)”, de Nat King Cole”. O público seleto aplaudiu muito. Quando terminou, não pude falar com ela, o pai já esperava, mas deu tempo de me perguntar: “Gostou, Carlos?”. Respondi num trocadilho com a última música. “Unforgettable. Dignas do nome, você e a música”.
Voltei lá outras vezes, mas acompanhado de Márcio, Juliana e Soninha. Num dia após terminar, na mesa com a turminha ela disse, com a mão em cima da minha. “Hoje vi um pensamento muito bonito, não sei de quem é, mas dedico a você. ‘As pessoas entram em nossas vidas por acaso, mas não é por acaso que elas permanecem’. Onde eu estiver, nunca vou me esquecer de você. Um amigo que me fez aproximar das pessoas. Elas estavam certas... eu era mesmo uma chata... mas você não via assim, talvez o único... e isso talvez tenha sido a chance que eu tinha para mudar”. Soninha quase chorou, afinal foram inimigas.
O ano foi acabando, troquei de colégio e não a vi muitas vezes. Na época não havia tantas facilidades de contato como hoje, mas carreguei comigo uma certeza: pelo menos três amigos eu consegui para ela.
Depois que me mudei de cidade, aí mesmo que não a vi mais. Dizem que se casou e de vez em quando pergunta por mim. Muito bom isso. Assim não me sinto um cara qualquer.