
( imagem google )
Os quatro dias que antecederam a cirurgia ele passou pensativo. Prevaleceu o dever médico, associado à boa índole e aos conselhos de dona Deda. “Vou operá-lo, não vou me revelar, ele que siga sua vida”. No entanto outras indagações surgiram no seu labirinto de sensações . Orgulhava-se de nunca ter perdido um paciente, e se o homem morresse em suas mãos? Dona Deda pensaria que ele o deixou morrer? Fervoroso na fé, orou na véspera. “Cristo. O Senhor que foi o maior salvador de vidas, foi Quem me deu o dom da medicina. Humildemente peço, controle minhas mãos durante a operação, não posso perder aquele homem”. Só não falou de perdão durante a oração, ainda não estava preparado. Perdão tem que ser espontâneo, precisa nascer dentro de você, antes mesmo de ouvir o pedido. Se o perdão não acontece dentro de você, não adianta ficar fazendo permutas. Cinco horas cansativas, mas a cirurgia foi um sucesso. Aliviado com o estado clínico do paciente, simultaneamente uma brisa, mesmo numa sala fechada, passou-lhe pelo rosto e pareceu lhe arrancar algo ruim. Estranha e divinamente não sentiu mais ódio. Isso o deixou duplamente feliz, não o amava, isso ainda era precoce, mas também não odiava. Pelo contrário, nos dias em faltavam para a alta do paciente, mostrou-se empenhado demais, a ponto da enfermeira comentar. “Puxa, doutor. O senhor mal está almoçando, visita esse paciente a cada hora, mesmo fora de risco”. Com um sorriso no canto da boca, respondeu. “Talvez eu tenha me identificado com ele”. O homem ainda não tinha recobrado os sentidos, às vezes ele mesmo o sedava e numa dessas ‘visitas’, olhou-o e murmurou. “Eu o perdoo, pai”. Quando saía do quarto, a voz que nunca ouvira antes, chamou. “Filho, espere”. A voz do pai ecoou dentro de si provocando tremedeira, abalando suas estruturas. Virou-se devagar, caminhou lentamente até a cama. “Como sabe que sou seu filho?”. Ainda grogue de remédios, o velho respondeu. “Sei tudo de você, meu filho. Sei também que devo explicações e um pedido de perdão. Prometi lhe conhecer um dia, mas jamais tentar tirá-lo de Deda, não seria justo. Num dos encontros sua mãe disse à Deda perto de mim. ‘Pressinto algo terrível. Se algo me acontecer cuide de meu filho’. Chorei muito a morte dela. Quando soube que o bebê ficou com Deda fiquei aliviado, pois eu era um irresponsável. Voltei para essa cidade há uns dez anos e por várias vezes escondido na esquina vi você sair e voltar do trabalho. Tive medo de morrer sem pedir seu perdão e agora estou aqui fazendo isso”. Doutor Suarez, interrompeu em lágrimas. “Claro que perdoo, pai. Não quero saber de passado, nem de explicações mais, quero ver no futuro breve, o senhor morando comigo e Deda, temos uma casa enorme”. Abraçaram-se demoradamente. Disse para a enfermeira que entrava. “Cristina. Cuide muito bem desse paciente, ele é meu pai”. E saiu eufórico, falando alto pelos corredores, sob olhares perplexos. “Meu pai está vivo. Encontrei meu pai. Venham ver o meu pai”. Alegria maior teve Deda. “Esse sim é o filho que criei. De bom coração, receptivo, humano. Não sabe como estou aliviada, é como se estivesse recebendo você de volta”. Faltavam poucos dias para a alta, doutor Suarez descansava em casa, quando o celular tocou. “Doutor, venha rápido, seu pai inexplicavelmente entrou em coma”. “Como assim... em coma? Ele estava tão bem. Estou indo”. Em alta velocidade passou sinais vermelhos, quase bateu o carro e entrou às pressas no hospital. No quarto, enfermeiras tentavam de tudo. “Deixe comigo, com licença”, disse. Dezenas de massagens toráxicas, oxigênio, choques, e tudo que eram tentativas de reaver o pai foram repetidas incessantemente, inultimente, mas ele não parava. Até que a enfermeira, pôs a mão em seu ombro. “Não adianta, doutor. Sinto muito, ele morreu”. Aos gritos ,debruçou-se sobre o corpo inerte. “Não... não... pelo amor de Deus. Não me deixe de novo, pai. Vamos morar juntos, a gente combinou”. Sem resposta. As enfermeiras o abraçaram chorando também. No fim do sepultamento, abraçado à mãe Deda, comentou. “O melhor médico não conseguiu salvar o pai”. Dona Deda o corrigiu. “Não diga isso. Tudo isso estava traçado, essas coisas não nos pertencem. Deus permitiu que ele vivesse mais uns dias para lhe dar a oportunidade de perdoá-lo. Saiba que ele mesmo se penitenciou todos esses anos, e morrer com seu perdão foi a absolvição para ele, pois passou a vida preso em culpa. E você por sua vez, não ficou diminuto como médico, mais dia menos dia algum paciente morreria em suas mãos. Ao contrário disso, você cresceu como gente, pois o perdão ao mesmo tempo que liberta quem pede, dignifca quem o concede. Eu me sinto honrada de meu destino ter cruzado com o seu”. Foram para casa abraçados. Um grande filho, uma grande mãe.