

Dona Jandira, era alta, não gorda, mas forte. Quase negra, dizia que era descendente de escravos e se orgulhava disso. Tinha cabelo pretinho, liso e curto. Todos os dias ela punha uma frase bonita no alto do quadro. Suas preferidas eram. "Educai a criança e não precisarás punir o homem". E a outra, de Monteiro Lobato. "Um país se faz com homens e livros".
Escola Estadual Costa Lacerda. Onde passei quase todo meu primário e onde escrevi meu primeiro texto poético. Eu nem sabia o que era isso, mas fiz. A professora iniciou um conto e mandou que os alunos o terminassem, cada um conforme sua imaginação. Eu completei usando minha mãe como tema. Quem quiser conferir leia em "Pérolas de minha infância- Iniciação poética", postado no blog em 17/julho/2008, mas a história não acabou aí, porém se fosse contar tudo, ficaria demasiadamente grande. O melhor da sala, ia concorrer com toda a escola e o prêmio era uma caneta de prata, cravejada de pedrinhas brilhantes. Sei lá se eram brilhantes de verdade, mas era linda sim, reluzente, de uma prata muito bem trabalhada. Eu ganhei. Fiquei tão metido que não deixei quase ninguém pegar. Nem mesmo a usei, guardei em casa dentro da caixinha.
Havia um menino bonito, loiro, riquinho, chamado Serginho, esse sim, era o nota dez da sala, que não gostava de mim de jeito nenhum e eu não sabia o porquê. Mas nessa ele perdeu e talvez isso tenha acirrado mais essa implicância comigo. O pior que eu e Francisco, tínhamos uma brincadeira de trocar os cadernos de todos no recreio. Um dia nós não fizemos isso, mas o tal Serginho deu falta de sua caneta de seis cores que gostava de exibir. Pronto. A caneta apareceu justo debaixo de minha carteira. Maior confusão, me chamou de ladrão, eu quis bater nele, até que Dona Jandira interveio. Só não fiquei de castigo até as treze horas, porque a professora garantiu à diretora, mulher carrancuda, mal humorada, que eu não havia pego nada, que era só um mal entendido. Mas acho que a diretora só queria dar uma satisfação à mãe do menino, que reclamava muito e exigia punição. Afinal, eram amigas. Isso foi em setembro, me lembro que era primavera, pois saíamos à ruas pedindo donativos para a festa da rainha.
Chegando o fim do ano, ia ter o amigo oculto e me arrependi de ter entrado. Meu pai havia morrido há poucos meses, a pensão custara a sair e as coisas apertaram em casa. Não tive coragem de pedir dinheiro à minha mãe. Foram passando os dias e eu ficando apertado, principalmente porque havia tirado para amigo oculto, justamente... Serginho. Tive uma idéia que em princípio me doeu um pouco, mas era a solução. Resolvi dar minha caneta. Fui nas gavetas de minhas irmãs que sempre guardavam papéis de presente e fiz um belo embrulho.
No dia, quando chegou minha vez, falei no centro da sala. "Meu amigo oculto, na verdade não é muito meu amigo...". Ia dizer mais coisas, de reconciliação, mas a turma não deixou, foram logo abafando, adivinhando. "Já sei, já sei. É o Serginho". Pronto, entreguei, ele nem me olhou.
Pouco depois em meio aos comes e bebes, Dona Jandira cortando o bolo em sua mesa me chamou, mandou que eu sentasse na cadeira e perguntou. "Quer um pedaço de bolo?". Disse logo que sim, eu adorava bolo. Ela cortou um pedação, me deu, ajoelhando à minha frente. Meus pés mal tocavam o chão. Lembro direitinho. Apoiou as duas mãos em minhas pernas, me olhou fixo por muitos segundos e perguntou já sabendo a resposta. "Por que você deu sua caneta?". Com a boca cheia, terminei de engolir um pedaço e respondi com naturalidade de criança. "Porque eu não tinha nada para dar". Ela pôs a mão no coração. "Ai, meu Deus, não me diga uma coisa dessa, menino. Não devia ter feito isso. A caneta era seu prêmio. Devia ter me falado, eu dava o dinheiro para você comprar o presente". Inocente, respondi de novo. "Ah, 'fessora. A caneta não importa. Importante é que eu tirei primeiro lugar, ganhei os pontos, isso ninguém tira de mim". Ela balançou a cabeça negativamente. "Importa sim. Claro que importa. Vou falar com o Serginho para devolver e eu dou a ele um presente". Arregalei os olhos e disse. "Não, 'fessora. Se a senhora fizer isso, aí mesmo que vou morrer de vergonha". Ela abaixou a cabeça por um tempo, me olhou de novo, apertou minha bochecha e concordou. "Melhor não mesmo. Deixe como está. Devia ter falado pra tia, meu filho. De qualquer forma foi uma bela atitude a sua. Demonstrou compromisso. Agora vá brincar, mas antes dá um beijo na tia." Disse pra ela levando a mão à boca. "Mas a senhora vai ficar com rosto sujo de bolo". Ela segurou minha mão. "Limpa não. Quero sujo de bolo mesmo, porque quero um beijinho bem doce". Beijei-a e quando saía, ainda a ouvi dizer. "Esses meninos me matam do coração".
Daí a três dias seria a entrega dos boletins e a despedida do ano.
As professoras gostavam de no final do boletim, escrever uma observação, uma mensagem ao aluno. No meu ela escreveu assim:
"Carlinhos. Nunca se esqueça de sua tia Jandira que amou muito a todos vocês, mas entre todos, você foi o mais doce. Que Deus ilumine sempre seu caminho para continuar sendo esse garoto de belas atitudes. É de cedo que se conhece os grandes homens. Parabéns". Eu não sabia direito o que queria dizer, mas se veio acompanhado de "parabéns", era coisa boa. Os coleguinhas gostavam de ver os boletins dos outros para saberem as notas. Eu vi de uns cinco ou seis, não exatamente pela nota, mas pelo que estava escrito. Ela escreveu igual em todos, menos no meu. No caminho de volta para casa, li para minha mãe e perguntei. “É coisa boa, né mãe?". "Claro, com certeza meu filho. Mamãe fica muito feliz", respondeu. Já bem longe, olhei para trás e tive a última visão da escola. Me deu uma vontade de voltar lá e perguntar ao Serginho por que ele não gostava de mim. Mas minha mãe estava com pressa. Quem sabe um dia. A vida sempre me deu uma segunda chance. Ou terá sido eu que sempre dei à vida uma segunda chance?
Há alguns anos voltei lá. A escola não existe mais, hoje funciona um clube de lazer. Como desculpa de ser um possível futuro sócio, pedi para entrar e " conhecer". Onde era minha sala, virou escritório. Onde era o grande pátio, tem várias quadras. Fui até o centro, fechei os olhos e pude ver... o sorriso farto e generoso de Dona Jandira, me olhando o tempo todo, com o rosto sujo de bolo, até o fim da festa. Agora entendo por que ela não limpou o rosto. Acho que queria que aquela imagem ficasse na minha retina. Ouvi também a gritaria dos meninos no recreio. Ecos de uma infância gostosa, quase sempre árdua, mas também divertida... porque eu fiz acontecer. Não sei por quê fecham escolas. Nenhuma pretensão de achar que sou um grande homem, mas sempre me pautei nos bons exemplos, e Dona Jandira, com certeza foi um deles. Vou emendar com todo respeito, a frase do grande mestre. "Um país se faz com homens e livros"... e professoras.