( Quebrando meu silêncio para homenagear o grande Shakespeare e ao
mesmo tempo recordar um de meus textos favoritos e que inclusive está no
meu livro )
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Dona
Zelina era uma alegre professora de educação artística na sexta série. Ela
adorava pintura. Sua frase
preferida
era: “Vocês cansam minha beleza”. Eu gostava muito daquelas aulas coloridas,
todo mundo falando ao mesmo tempo. Eu nunca soube desenhar direito. Meus desenhos
eram basicamente, uma casinha com chaminé, um riacho, uma nuvenzinha rindo, um
sol surgindo por trás dos montes e uma vaquinha pastando. A professora falava: “Você
está sendo repetitivo. Tente criar outro tipo de desenho”. Um dia, de brincadeira,
fiz o mesmo desenho, porém com duas vaquinhas. Ela disse: “Não estou vendo nada
de diferente”. Retruquei: “Tem sim, agora existem duas vaquinhas, a fazenda
está crescendo”. Ela
riu:
“Pelo menos no humor você foi criativo. Vou te dar um sete por isso”. Na semana
das crianças, foi organizada uma gincana cultural entre as salas, e teria
apresentação de palhaços, teatrinhos, dança, coisas regionais, folclore etc.
Nem éramos tão crianças, tínhamos entre 13 e 16 anos. Eu, 14. Tinha um rapaz,
que deve ter virado artista, pois na época era muito bom no que fazia. Ele
faria teatro de bonecos, fantoches, marionetes, desses que se fica escondido manipulando
e fazendo vozes. Nossa sala seria a última na sexta-feira e depois o
encerramento. O rapaz escolheu Romeu
e Julieta, mas teve um pequeno acidente e não
poderia
representar. Dona Zelina, endoidou: “E agora, gente? O que faço? Vai ser feio
cancelar. Colocar o quê no lugar?”. E assim, cada um ia dando sugestão, umas engraçadas,
outras malucas, outras boas, mas nenhuma se aproximava da intenção da festa.
Dona Zelina preocupada: “Nada disso serve. Tem que ser o teatrinho ou algo parecido,
pois foi anunciado assim. Vocês não conhecem alguém que saiba fazer? Eu pago.
Está tudo prontinho, o cenário, vai ser uma pena não ter”. E começou a andar pela
sala, mãos nos quadris. Ela amava o que fazia. Senti certa tristeza em seu
olhar e talvez isso me tenha feito dizer uma loucura, numa atitude impensada: “Eu
sei quem faz”. Ela levantou a cabeça. “Quem? Apresenta para mim”. “Eu”. Entre
feliz e surpresa, perguntou: “Sabe mesmo, Carlos? Espero que não esteja
zombando de mim”. Sei sim, ‘fessora’, é só decorar o texto, mudar as vozes. Só
preciso treinar a manipulação. Sou bom de
memória”.
Ritinha, uma menina magrinha, disse: “Ele deve saber sim, ‘fessora’. Ele é
poeta, né?”. Dona Zelina veio se aproximando devagar, olhando-me, apontando o
dedo. “É verdade, tem a ver, arte é arte. Tem certeza mesmo, Carlos, que pode
salvar a pele da professora mais querida e linda da escola?”. “Deixe comigo, ‘fessora’”,
piscando para ela. “A senhora é linda mesmo. De boniteza nessa escola, a
senhora só perde pra mim”. Riso geral, com direito a algumas vaias. Sentada ao
meu lado, falou: “Menino, você merece um beijo”. E estalou um beijão na minha
bochecha. Adoro ganhar beijo na bochecha. Passei dois dias decorando, manipulando
na frente do espelho, treinando vozes. Não vou negar que fiquei preocupado. Era
coisa nova para mim, nunca tinha feito e era muita responsabilidade. A escola
inteira estaria lá. Felizmente
deu
tudo certo. Meu teatrinho ficou legal. Só que mudei o final. O romance termina
com drama. Pensei: “Dia das crianças terminar em drama? As pessoas vão estar
ali para sorrir e não para chorar”. No meu texto, fiz o amor dos dois
reconciliando as famílias. Antes perguntei à professora se podia alterar
daquela forma. “Você pode tudo, menino. Com uma pequena observação. É um tipo
de plágio, hein?”. Balancei o dedo. “Não, é uma alternativa. É um direito de
sonhar que as coisas vão terminar sempre bem. Quem sou eu para plagiar
Shakespeare, um gênio, mas não gosto de Romeu
e Julieta, porque morrem no final. Prefiro um
‘viveram felizes para sempre’. Custava as famílias fazerem as pazes e deixarem
o casal namorar? Então o ódio venceu?”. Ela ponderou: “Mas foi esse toque de
tragédia que fez a obra ficar tão famosa”. “Eu sei,
tragédias
vendem mais. A maior obra literária de todos os tempos é uma tragédia”. Ela
riu, mas aconselhou: “Cuidado com esse mundo que você visualiza dentro de você.
O desengano pode ser grande”. “Fique tranquila, eu manipulo esse mundo melhor
do que fiz com as marionetes” Ela finalizou: “Não vou discutir com meu
geniozinho poeta, o que importa é que ficou muito bom”. No ano seguinte, eu
iria para o turno da noite. No fim do ano, quase saindo no portão, me chamaram.
Olhei e era ela: “Vai embora assim, sem me dar um abraço?”. “Desculpe ‘fessora’,
é que não gosto de despedidas”. Segurando meu rosto, fixando nos meus olhos,
falou: “Desculpo não. Não tive a felicidade de ter um filho rapaz. Tenho três
moças que amo. Mas se tivesse um filho rapaz e eu pudesse escolher, ele seria
você. Pode ter certeza que você é sim, o mais lindo da escola”. Abaixei a
cabeça, pois fico tímido nessas situações. Com muito custo consegui falar: “Mas
a senhora também é pessoa boa”. “Sou nada, sou uma velha chata. Ser bom não é
para qualquer um. Ser bom é muito difícil. Seja sempre esse rapaz reto, conciliador,
culto, interessado pelas pessoas que você vai
ser
muito feliz”. Levantou meu queixo pedindo: “Dá um sorriso pra mim”. Tentei... mas
não consegui. Nos abraçamos demoradamente. Sua última frase antes de eu sair foi:
“Você não precisa aprender a desenhar, você já é uma pintura, Deus te abençoe
sempre”.
Maravilhoso texto!
ResponderExcluirAmei
Beijo
http://coisasdeumavida172.blogspot.pt/
Oi Carlos,
ResponderExcluirEu precisei segurar minhas lágrimas, já estou dodói e chorar não vai combinar.
Seu texto foi de arrasar, aliás, tudo que escreve arrasa.
Muita sorte pra você"Menino passarinho".
Beijos no coração
Minicontista2
Que lindo, Carlos! Vivências ricas de afetividade, de doação, de reconhecimento... que nunca se esquece. Uma atitude ousada sua, mudando o final, em prol da alegria. Habita em você o sentir que alimenta a alma dos poetas. Bjs.
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